Sabem aquela pessoa que
por vezes olhamos de soslaio, pensamos que seria interessante conhecer, mas
mantemos distância?! Pois...o Imprevisto é uma dessas pessoas.
O Imprevisto é o meu
novo amigo.
Ligeiro ar de arrogante
e prepotente, mas no fundo não passa de um bonacheirão de coração mole (daí atrair
tanto os mais sensatos, como os mais descoordenados).
Como sou uma Realidade
inconstante, decidi dar-lhe uma oportunidade e convidei-o para um serão
agradável no meu ponto alto predilecto.
Pisamos caminhos - pra mim já tão familiares - gastos pelos
passos do tempo, pelas carícias da saudade, pelas marcas forjadas de memórias intemporais.
Apesar do Imprevisto
ter reclamado previamente de possíveis vertigens, não foi preciso insistir
muito, ganhou confiança e seguiu-me. -Aaah bom, afinal essas tuas vertigens não
eram assim tantas! - brinquei eu.
-Estou muito bem, aqui
não tenho qualquer problema. - disse algo como isto.
O seu receio baseava-se mais no facto de não
existirem barreiras de protecção, o que neste caso não se aplicava, os muros
eram quase mais altos que eu mesma, que a própria Realidade em pessoa!
-Bolas, agora mesmo que
quisesse que ele se segurasse a mim, não resultaria.. -pensei eu perversamente.
-Mas que estou eu prá
aqui a pensar? Mal conheço este Imprevisto, vamos lá acalmar!! - ralhei com o
diabólico subconsciente. O danado anda a pisar o risco.
Mudámos de ares e foi a
vez de ser surpreendida; nada mais normal vindo de um Imprevisto irreverente e
relaxado como este. Lá partimos, lado a lado, falando tanto de mim (uma
Realidade preocupada com mil coisas e carismática) ora saltando para ele (um
Imprevisto sempre atento e preparado para improvisar soluções). Mas que dupla
interessante...
Os risos eram contagiantes
como os pingos de chuva que sentia a aproximarem-se.
-Chegámos! -exclamou ele
animado.
Via um pequeno jardim,
com passeios em labirinto.
-Hum, mas o que é isto?
-Este é o Jardim dos
Sentimentos. Cada zona tem uma tabela a indicar o sentimento. - mencionou
sorridente.
Impossível, pensei
eu..um Jardim dos sentimentos? Como poderia ser? Iria eu ser apanhada em tal
teia abstrata, eu..uma Realidade tão terra -a- terra, e realista..não, não.. não
poderia admitir tal coisa!
Ganhei coragem e fui
espreitar o espaço de outra dimensão, um poço abismal de sentimentos
contraditórios, agridoces, tentadores e desconsertantes. Já não bastava a minha
confusão natural, ainda mais esta para me destabilizar..raios, este Imprevisto
é perspicaz e astuto, mas não vou ceder. - pensei.
Deslizei pela Inveja de
um mundo podre, pela Guerra que adoptei como irmã, planei ao de leve sobre o
Amor, e nem sequer atingi a Paz.. Muitos sentimentos tinham desaparecido,
desmaiados sem vida sobre a relva, desfalecidos pela decepção humana..para trás
deixaram uma Esperança orfã e ferida.
Terminei na Justiça,
que me olhou em tom de desagrado. -Deixa lá, também nada espero de ti, nunca te
entregaste de corpo e alma. Nada me dizes e assim continuará a ser... - matutei
com os meus botões.
Senti-me a estremecer
por dentro..
-Hey..o que se passa?
Que foi agora?
Afinal, era eu que sentia vertigens, era eu
que precisava de me segurar em palavras, e amparar toda a tempestade de
sentimentos que se estilhaçavam no peito.
Fiquei sem fôlego, mas
continuei o caminho. Não poderia dar a entender como aquele momento me afetara.
Onde já se viu uma Realidade fraquejar assim? Não..não..não podia ser!
Começou a pingar.
Eu sabia que o meu
instinto estava certo. E quando julgava que a chuva me daria algum alento, não
poderia estar mais enganada. Tivemos que nos recolher, e assim ficámos mais
próximos. Nem consegui olhar-lhe nos olhos..que Imprevisto inquietante, que
receio em mostrar o brilho dos pensamentos que me assombravam.
Conversámos de tudo, e
de nada. E por fim, quando a natureza assim o permitiu, saímos e seguimos
caminho.
Não esperava qualquer
despedida, sou uma Realidade teimosa e cautelosa...alguma distância seria a
medida mais correcta. Ele não pensou assim. Usou a minha mão como ancora e puxou-me
ligeiramente para si. Beijou-me rapidamente a bochecha fria, e queria um como
resposta o descarado!! Depois de tanto me inquietar, ainda me fez essa..que
personagem de contrastes; ora previsível, ora indecifrável.
Fiquei sem reacção, mas
depressa retribui o acto. Ainda meia atordoada, separá-mo-nos e seguimos
caminhos opostos. E mergulhada no calor do silêncio, fui para casa a pensar,
com um leve sorriso pendurado:
-Poderá uma Realidade perturbada
encaixar-se num mundo de Imprevisto, ou este faz já, indiscutivelmente parte
dela?
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